Sementes de revolta?

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Mário AbrantesSão tempos inquietantes aqueles que atravessamos. Tempos onde se cruzam escolhas e caminhos em sentidos diversos e sem retorno, agudizando contradições, rompendo harmonias, gerando insegurança persistente, mas também rasgando horizontes e apelando à cidadania e ao seu exercício activo, ao direito à indignação, à contestação e à luta prolongados e em várias frentes, pela democracia plena e pela emancipação social.

 

Com o Tratado de Lisboa a entrar em vigor no mesmo dia, há 369 anos, em que a Nação reconquistou a sua independência, é Portugal que principia a ser deglutido enquanto nação independente e soberana, por uma Europa que se foi impondo aos seus povos e nações, num determinado e pré-deliberado sentido, ao longo de mais de 50 anos, sem recurso a um único debate ou referendo representativos e essenciais, ou seja, pelo recurso àquilo a que em boa verdade se deveria chamar de um “golpe de estado surdo e continuado”. Foram sempre os homens do poder, e os interesses a eles ligados, que se reservaram ao direito de escrever e reescrever, sucessivamente, as regras do poder desta Europa.

Regras escritas que agora, expressamente e de forma para-constitucional, privilegiam, ao longo de muitas páginas, a banca, os mercados, a livre concorrência, a livre circulação de capitais, as privatizações e a luta contra a inflação.

Regras escritas que, por vontade expressa dos seus autores, praticamente omitem as referências ao progresso social, à solidariedade e fraternidade, aos serviços públicos, à luta prioritária contra o desemprego, ao direito à saúde, à reforma, ao salário mínimo, ou à habitação.

Regras escritas onde uma delas se encarrega de tornar praticamente irreversíveis todas as restantes, e por tempo indeterminado! Onde o Direito (dito) Europeu se sobrepõe absolutamente ao Direito Nacional dos Estados Membros. Regras escritas que retiram poder legislativo autónomo e soberano aos Estados e Regiões, substituindo-o pela obrigação, quase simplesmente administrativa, de transpor directivas. Que proíbem aos Estados e Regiões deliberarem sobre ajudas públicas (com excepção das ajudas à Banca, claro!). Regras escritas que alongam a distância das ultraperiferias aos centros de decisão, entretanto deslocalizados, obrigando-as entretanto (num igualitarismo profundamente discriminatório) a concorrer ao mesmo nível, em direitos e obrigações, de qualquer outra região.

Mas, vinda do outro lado do Atlântico, numa igualmente importante iniciativa a decorrer em Lisboa em simultâneo: a Cimeira Ibero-Americana (apesar das significantes ausências), a afirmação do direito à soberania e à independência dos povos e nações, ironicamente, não deixou de se fazer ouvir, atraindo no sentido inverso a atenção dos portugueses. Bastaram as palavras de Lula da Silva (com toda a propriedade, dir-se-á!) condenando sem apelo nem agravo os golpes de estado na América Central e do Sul como forma inadmissível de ingerência e imposição do poder...

São sementes que permanecem em dormência por estes lados, mas que o tempo se encarregará de fazer eclodir, como a própria Natureza normalmente determina.

 

Artigo de opinião de Mário Abrantes, publicado no jornal "Diário dos Açores" na sua edição do dia  3 de Dezembro de 2009