Isto porque ali mesmo ao lado, na aldeia global, existem economias poderosas que, para avançar, pouco se preocupam com os direitos reivindicados em Paris. Direitos estes que aliás, num sítio chamado Portugal (da mesma aldeia grande), embora injustamente feridos pela mão de Bagão Félix, e ainda não sarados pela mão de quem, hoje no Governo, se comprometeu a fazê-lo, são direitos adquiridos e património civilizacional da Democracia (que como se sabe não é só política). Assim temos que, segundo o autor, em lugar de perderem tempo a discutir o “sexo dos anjos”, os franceses (e os portugueses por tabela, naturalmente), porque o “mundo não pára de evoluir”, terão de se conformar, para seu próprio bem, com a transformação dos progressos em recuos e, porque há países com economias poderosas que não respeitam direitos, aos menos poderosos apenas lhes resta como saída, para o caso de pretenderem continuar vivos, retirar direitos (em biologia, chamaria a isto a lei da selva).
De uma coisa tenho a certeza: se o homem regressasse às cavernas, os problemas de que fala o autor estariam por natureza resolvidos já que, pura e simplesmente não existiriam. Que as leis do mercado puro e duro são semelhantes às da selva, disso também não tenho dúvida (e não é novidade de agora), mas sempre os avanços da humanidade sob o sistema capitalista se saldaram pela afirmação basilar do primado do homem relativamente aos interesses do mercado. E sempre que tal não acontece, como tem sido mais frequente, é o saldo da acumulação capitalista que sobe exponencialmente, e as desigualdades, a injustiça, a exclusão, a pobreza e a miséria sociais que se instalam ou se avolumam. Perante isso, a resposta nunca poderá ser (nem nunca será senão para os derrotados à partida) o recuo, e muito menos o convencimento dos atingidos por tais situações de que esse recuo lhes é favorável enquanto cidadãos, ou até simplesmente enquanto seres humanos.
Ora é precisamente uma fase de primado da liberalização do poder económico, e da consequente subjugação do homem, aquela que atravessamos há mais de 20 anos neste país, ao ponto de um dos seus principais responsáveis, hoje investido de funções presidenciais, reconhecer no dia 25 de Abril (não sei se sinceramente, nem tão pouco isso é relevante para o caso), perante a Assembleia da República, que “ficámos muito aquém na concretização de uma sociedade com maior justiça social”. E vem o autor, que não sei se admite esta asserção como verdadeira, afirmar que a luta pela justiça social só tem por saída possível retirar conquistas sociais, e tudo o resto é o mesmo que discutir… o “sexo dos anjos”! Mas o 25 de Abril aconteceu de facto e o 1º de Maio está aí a bater à porta…
Mário Abrantes, no Jornal dos Açores, Ponta Delgada, 27 de Abril de 2006