(In)segurança social

mario_abrantes"As associações de deficientes não podem depender apenas do favor do Estado", afirmou o primeiro-ministro Passos Coelho a semana passada em entrevista à RTP-1.
Desta frase, começamos por destacar a mentirinha subtil da hipotética dependência exclusiva, já que, como os próprios deficientes e suas famílias bem sentem na pele, nunca as associações de deficientes dependeram exclusivamente do Estado. Mas o acento tónico da falácia vai no entanto direitinho para a gravidade do pressuposto, vindo da boca do 1º ministro de um Estado de Direito, de que o apoio estatal às associações de deficientes constitui um "favor" em lugar de uma obrigação. Trata-se de um conceito profundamente errado e usurpador das funções sociais do Estado, das quais todos deveríamos ser beneficiários na medida das necessidades, e para as quais todos, enquanto Estado, contribuiríamos na medida das possibilidades.
Esta vontade tremendamente injusta de relaxe das obrigações do Estado para com as associações de deficientes não é circunstancial, ela faz parte antes de um complexo de ações governativas de conteúdo ideológico bem definido desenvolvidas por uma clique que subiu ao poder e que tem vindo a promover de forma mais ou menos torpe, com mais ou menos justificações enganadoras, a subversão geral do conceito de serviço público, em particular o social, através da redução sistemática da sua importância, mas sem largar mão do conceito contributivo que lhe é complementar, promovendo antes o aumento sistemático da carga fiscal direta ou indireta sobre a maioria dos cidadãos.
À luz desta política, em paralelo com a saúde e a educação, está-se desenrolando um ataque virulento à Segurança Social Pública debaixo da moldura justificativa da sua falta de sustentabilidade (para cuja divulgação o governo até conta com a preciosa ajuda de certos comentadores pseudo-contestatários como Medina Carreira, por exemplo), visando a respetiva privatização e a sua transformação em mais um negócio rendoso para grandes grupos económicos.
Ora a verdade é que a Segurança Social Pública na parte relativa ao regime contributivo, não depende diretamente do Orçamento do Estado mas sim diretamente dos descontos dos trabalhadores e suas empresas. Na parte relativa ao regime não contributivo, isto é, as pensões sociais, a ação social, etc., aqui sim, são os impostos a assegurar o seu financiamento via transferências do Orçamento do Estado.
No regime não contributivo, no entanto, o que as estatísticas oficiais dizem é que, apesar do agravamento da crise social e da pobreza, as transferências do OGE (ordinárias e extraordinárias) nos últimos seis anos pouco têm aumentado, desmentindo assim qualquer hipótese próxima de rotura. No regime contributivo, apesar do desemprego, da baixa generalizada de salários e do aumento do número de reformados, o facto de em Portugal existirem, por cada pensionista, mais de dois trabalhadores no ativo, e o facto do total dos descontos continuar a crescer, embora crescendo muito menos desde 2008 (não implicando portanto quaisquer transferências do OGE), demonstram a grande mentira daqueles que, visando atacar as funções sociais do Estado com objetivos democraticamente perversos, pretendem convencer a opinião pública de que a Segurança Social não é sustentável.
E se dificuldades existem no chamado regime contributivo isso deve-se, apesar dos cortes na atribuição do subsídio de desemprego, ao aumento das despesas com essa rúbrica, ao aumento do trabalho precário e clandestino e ao acumular de dívidas das empresas para tentar fugir à falência, isto é, à prolongada política recessiva e de austeridade deste governo e à sua chamada disciplina orçamental (já lá vão três anos e a dívida pública sempre a crescer). Uma disciplina que apenas se dirige a uns, a maioria, para logo se diluir em benefícios fiscais e múltiplas benesses financeiras distribuídas por outros, poucos, e uma política que, segundo afiançou recentemente a ministra das Finanças aos seus patrões da UE, já não tem retorno e é para continuar além da troika...mas, perdoar-me-á a sra. Ministra lembrar-lhe, uma "disciplina" e uma política que são para acabar assim que o povo quiser!

 

Artigo de opinião de Mário Abrantes, publicado em 23 de fevereiro de 2014