O cimento da convergência

mario_abrantesO fechar do ano em que se comemora o 40º Aniversário da Revolução de Abril, por um lado, e o anúncio da abertura ao entendimento à esquerda, no Congresso do PS, por outro, suscitam-me as seguintes questões:

O pluralismo, a paz, os direitos políticos, sociais, laborais e culturais, a autonomia regional e a independência nacional, conquistados com Abril, voltaram hoje a ser abertamente ameaçados pela subversão programada por mão de jovens descendentes ideológicos do obscurantismo salazarento, suportados pelos mesmos de outrora. Mas entretanto, há mais de 30 anos, o país foi sendo amarrado a tratados não sufragados, no âmbito da UE, impregnado pelo cinzento manto do pensamento único e pela necessidade inevitável de garantir a entidades sem alma, a que chamaram de banca ou troika ou BCE ou FMI, aquilo com que podem contar hoje e amanhã, em troca da perda da garantia presente e futura da estabilidade, segurança e qualidade elementares da vida dos portugueses, cujo direito Abril houvera restaurado. Em toda esta derrapagem sucessiva de Abril, de que forma se posicionou o PS?

Quando, em conexão com os valores de Abril e a Lei Fundamental, face aos avanços contra-revolucionários, se volta a desenhar como imprescindível um efectivo controlo público sobre a banca comercial, logo os arautos, no governo português, da oligarquia financeira transnacional se destemperam e gritam que "esses tempos não voltarão mais", exalando ódio ao 25 de Abril e ressuscitando o papão anti-comunista. Estará, neste caso, a nova direção nacional do PS disponível para se distanciar de tais posições?

Quando se torna razoável preparar o país para uma eventual saída do euro, como questão estratégica para o retorno ao crescimento económico sustentado e socialmente útil, e para uma política patriótica e de rotura com a submissão incondicional a interesses externos, como Abril consagrou, logo os obscurantistas do presente se afoitam a tentar demonstrar que uma tal alternativa está fora de questão. O que pensa disto a nova direcção do PS?

Quando, tendo pelo seu lado a Constituição e os valores de Abril, mas enfrentando a pressão sufocante sobre o défice público, imposta pelo Tratado Orçamental, e de uma dívida externa monstruosa, sempre crescente e bloqueadora do investimento produtivo e do desenvolvimento, se aponta como inevitável a recusa do primeiro e a renegociação de montantes, prazos e juros da segunda, logo atroam as vozes do poder e os comentadores a elas atrelados que a credibilidade externa de Portugal se perderia por completo. E o que tem a dizer sobre o assunto a nova direção do PS?

Para romper com o devastador, vexatório e intolerável modelo económico e social que nos está a ser imposto, e para encontrar uma solução alternativa democrática e de esquerda, não é possível contornar ou fugir às questões essenciais aqui colocadas. Estará a nova direção do PS disponível para trabalhar conjuntamente nesta solução?

Oriundos de diferentes quadrantes, que não só do PCP ou BE, e forjados na resistência e no combate às políticas direitistas dos governos dos últimos 37 anos, muitos outros vêm convergindo nestes pontos de vista, movidos por propósitos semelhantes. Tal como a contra-revolução prossegue atentando contra os valores de Abril e contra a Constituição, esses valores continuam no essencial, 40 anos depois, a constituir o cimento para que esta convergência se consolide, avance e finalmente consiga romper com a política de desastre nacional que está a ser seguida em Portugal.

 

Artigo de opinião de Mário Abrantes, publicado em 3 de dezembro de 2014