Na sua intervenção inicial sobre a legalização da sorte de varas na região, o deputado regional do PCP, Aníbal Pires, afirmou que "a sorte de varas, que se pretende agora introduzir, é uma prática estranha, estrangeira, distante dos nossos costumes, de difícil compreensão para a nossa cultura, e que poderá, a prazo, ser um factor prejudicial para a própria vitalidade da tradição da tourada à corda."
Intervenção de Aníbal Pires
Antes de abordar este controverso tema que discutimos hoje, quero manifestar o meu mais profundo respeito por todos os aficionados do espectáculo taurino, em todas as suas manifestações e o reconhecimento da importância da festa brava na cultura e tradições dos povos ibéricos e latino-americanos.
As críticas que fazemos à prática que este diploma pretende introduzir não são feitas a partir de qualquer postura de superioridade. Pelo contrário, são feitas com toda a lealdade, frontalidade e respeito pelas concepções e paradigmas de cada um.
E gostaria que todos os Senhores Deputados tenham esta realidade bem presente, mesmo na eventual crispação que possa acontecer no calor deste debate.
O que discutimos aqui hoje são argumentos políticos sobre um problema político.
Não se trata do confronto entre mundivisões éticas irreconciliáveis e antagonistas, nem de uma luta entre melhores e piores.
Não há aqui vítimas, nem carrascos, mas sim deputados com diferentes posicionamentos e opiniões que desejam discutir e debater num clima saudável de respeito democrático.
Assim o entendemos e assim esperamos que o entendam também.
Posto isto, quero começar por afirmar o nosso inquebrantável apoio às tradições populares portuguesas. O PCP, nos Açores como em todo o país, coloca como valor cimeiro a defesa e valorização dos nossos costumes, elementos incontornáveis da nossa identidade, referenciais basilares do que somos enquanto povo.
Por isso, aqui nos Açores, valorizamos sobretudo a apropriação popular da festa brava que é, incontestavelmente, a tourada à corda.
Foi nessa prática que o povo açoriano encontrou a liberdade de viver a festa dos touros à sua maneira, sem imposições e sem importações, demonstrando, na pureza e carinho com que soube manter esta tradição, o profundo significado desta festa.
Porque é neste costume, não noutro, que residem porções substanciais e significativas da nossa identidade e da forma como nos relacionamos com o nosso meio, mormente com os animais.
E a natureza da tourada à corda, uma das festas que melhor definem a profundidade da alma açoriana, é o facto de respeitar o animal, de o acarinhar e, diria mesmo de se colocarem o homem e o touro em plano de igualdade, naquele toca e foge de emoções e alegria, que move a população em peregrinação de freguesia em freguesia, de tourada em tourada.
A tourada à corda é um momento genuíno de alegre e inclusiva simplicidade, tão característico das nossas tradições e cultura, de entre as quais as Festas do Divino Espírito Santo pela sua universalidade no mundo açoriano são paradigma.
Esta lição que recolhemos das tradições do nosso povo, ensina-nos que a sorte de varas, que se pretende agora introduzir, é uma prática estranha, estrangeira, distante dos nossos costumes, de difícil compreensão para a nossa cultura, e que poderá, a prazo, ser um factor prejudicial para a própria vitalidade da tradição da tourada à corda.
É fundamentalmente pelo respeito devido às nossas tradições e à nossa cultura que rejeitamos esta pretensão de um grupo de deputados de introduzir a sorte de varas na Região.
Mas é também no campo das referências que nos permitiram avanços civilizacionais que esta pretensão nos oferece muitas dúvidas e, é também por esse motivo que nos opomos frontalmente e rejeitaremos esta proposta.
As ideias, os costumes e as tradições evoluem, desenvolvem-se, arrisco dizer aperfeiçoam-se, à medida que a história do homem nos vai progressivamente libertando de um passado em que mais duras condições de vida impunham uma diferente concepção e sensibilidade perante os diferentes problemas que se foram colocando ao longo da história da humanidade quer se colocassem ao nível do relacionamento interpessoal, quer ao nível do respeito pelos valores naturais e ambientais.
À medida que as gerações se sucedem, melhorando progressivamente as suas condições e qualidade de vida, os seus valores aproximam-se mais de um ideal humanista de harmonia entre os homens e entre estes e o mundo que os rodeia.
Sem dúvida que o espectáculo da sorte de varas agradará a uma minoria de açorianos e, como dissemos no início desta intervenção, são merecedores de integral respeito e não nos compete emitir qualquer juízo moral sobre a sua opção.
Mas o que nos é agora proposto constitui, objectivamente, um retrocesso em termos dos paradigmas civilizacionais que nos regem. Com isto, como já afirmei, nunca poderemos estar de acordo.
Também, contraria os tratados internacionais de qual Portugal é subscritor, nomeadamente da Declaração Universal dos Direitos dos Animais.
Mas, mais grave ainda, entra em plena contradição com a imagem de valorização ecológica e ambiental que os Açores pretendem transmitir ao mundo, o que pode ter negativas e graves consequências, quer em termos da afirmação internacional da Região, quer em termos de fluxos turísticos por parte de mercados com elevada consciência ambiental.
Algumas palavras, também, no plano político, para a génese e implicações desta proposta.
Desde logo, o grande problema político é que, em termos de democracia, esta proposta é um verdadeiro buraco negro! E as senhoras e os senhores deputados sabem-no, têm disso consciência!
E sabem-no tão bem que os próprios subscritores em nenhum momento vieram a público defender esta proposta!
Não tiveram a frontalidade de a defender fora da Sala da Comissão e fora deste hemiciclo porque sabem que é uma proposta descontextualizada no tempo e no seu objecto e, este será o mais importante de todos os fundamentos: uma proposta com a qual a esmagadora maioria dos açorianos não concorda.
E por isso o silêncio!
Por isso a tentativa de aprovar a sorte de varas nas costas do povo açoriano!
Os proponentes remeteram-se ao silêncio das tertúlias porque sabem que a sorte de varas não constava do programa eleitoral de nenhum dos partidos representados nesta Assembleia e, como tal, não possuem qualquer legitimidade sufragada pelo povo açoriano para a propor e, por conseguinte, impor!
Têm-se remetido ao silêncio porque sabem que procuram apenas satisfazer o interesse comercial de uma minoria localizada e dos seus grupos de pressão ligados à promoção de espectáculos taurinos, ao mesmo tempo que vão de arrasto, cumprindo a agenda política do Deputado da Representação Parlamentar do PPM que, como é do domínio público, esteve na génese desta proposta. Aliás, segundo informações divulgadas na imprensa regional e nacional que não foram desmentidas, o deputado Paulo Estêvão procedeu a uma inflexão na sua agenda política para que outros deputados, a título pessoal, pudessem subscrever a sua proposta e assim perspectivarem a sua aprovação.
Finalmente Senhoras e Senhores Deputados, em virtude de esta proposta ter saído do âmbito partidário, pois o PS, o PSD, o PP e o BE conferiram aos seu grupos parlamentares liberdade de voto, quero reforçar o apelo pessoal que na passada segunda-feira vos fiz chegar.
Respeitemos a forma singular de humanismo que o povo das nossas ilhas foi criando ao longo das gerações, e a que os nossos maiores chamaram açorianidade.
Os animais, da terra e do mar, de que sempre tirámos sustento e riqueza, sempre mereceram o respeito e a dignidade da sua condição.
Não adulteremos as nossas tradições e a nossa cultura.
Não sejamos os protagonistas de um profundo erro político que vai prejudicar a imagem dos Açores no Mundo.
Não sejamos Senhoras e Senhores deputados os protagonistas de um erro político que, inevitavelmente, nos mergulhará numa luta sem sentido, quando devíamos unir esforços para utilizar as nossas alargadas competências legislativas consagradas no Estatuto para preparar o futuro da Região.
Não desperdicemos o nosso potencial autonómico com um assunto que merecendo, como disse, todo o respeito nada diz à maioria do Povo Açoriano e mormente ao povo das ilhas onde a festa brava é uma festa popular por excelência.
Disse.
O Deputado Regional do PCP
Aníbal Pires