Muito do que hoje é comummente aceite com naturalidade e normalidade
até assim ser foi objecto de um processo de construção social.
Processo, mais ou menos demorado e elaborado, consoante os meios
utilizados, a sua importância e objectivo a atingir.
Foi assim (e é) com o racismo e a discriminação social, com o conflito israelo-palestino, com a situação que se viveu recentemente em Timor Lorosae, com o arrastão de Carcavelos e com muitos outros mitos, velhos e novos, que deixaram de o ser para se tornarem parte de uma verdade absoluta na qual a maioria acredita piamente.
A maioria dos portugueses olha para os palestinianos como potenciais terroristas e não como um povo ocupado violentamente pelos israelitas que luta contra o seu ocupante. Ainda hoje um grande número de portugueses garantirá a pés juntos que o ano passado na praia de Carcavelos se deram incidentes, envolvendo cerca de 5 centenas de jovens negros, conhecidos como um “arrastão” e que nunca aconteceu.
A desconstrução dos mitos torna-se, pois, uma tarefa ingrata. Como explicar, por exemplo, à maioria dos jovens que hoje buscam emprego que os “recibos verdes” e os “contratos a termo incerto”, ou seja, a precaridade das relações de trabalho foram generalizadas e instituídas, não porque sempre assim foi ou porque era inevitável que assim fosse para a competitividade da economia nacional mas, porque a flexibilização e, em última instância, a desregulamentação total das relações laborais são um objectivo do poder económico e do grande capital.
Não será fácil a desconstrução mas, a verdade é que quer o recurso à utilização de trabalhadores independentes (a recibo verde), quer os contratos a termo surgiram, inicialmente, como resposta a necessidades residuais de trabalho ou a trabalho sazonal mas a sua aplicação generalizou-se às necessidades permanentes e nada tem a ver com mais oferta de trabalho em determinados períodos do ano. Hoje, no entanto, são na generalidade aceites, nomeadamente pelos jovens trabalhadores qualificados profissional e academicamente, com normalidade e como se alternativas não houvesse.
Actualmente já se verifica, ainda que de forma marginal, uma realidade que abrange alguns profissionais e que mais tarde ou mais cedo o quadro legal vai adequar a essa nova “realidade” em construção.
Alguns sectores de actividade, com particular incidência na segurança e limpeza, mantêm com os trabalhadores uma relação de trabalho “sui generis”. Os trabalhadores só têm direito a retribuição quando efectivamente estão em actividade, ou seja, estão disponíveis e em permanência no seu local de trabalho mas, não tendo actividade não têm direito a retribuição.
Para se perceber o alcance e o perigo da generalização desta refinada forma de exploração do trabalho, sempre em nome da modernidade é claro, ilustro-o com o seguinte exemplo: - Um médico em situação de urgência tem de estar disponível e em permanência no seu local de trabalho, porém só será retribuído quando estiver em actividade, isto é, quando chegar um doente que necessite de cuidados médicos na urgência e pelo tempo em que o profissional de saúde estiver a fazer socorro e tratamento ao doente ou sinistrado. O restante tempo é considerado “tempo de espera ou de inactividade” que poderá, ou não, ser retribuído.
A Comissão Europeia prepara há algum tempo uma directiva sobre o denominado “tempo de espera” ou “tempo de inactividade” que, não é nem mais nem menos do que a resposta a uma realidade actualmente em construção e que a breve trecho se transformará numa necessidade. Necessidade de adaptação do quadro legal à realidade vivida no mercado de trabalho.
Quarta-Feira, dia 19 de Julho de 2006
Aníbal Pires em AZORESdigital