Práticas radicais

anibal_pires.jpgFui perdendo o hábito, por uma questão de higiene, de ver televisão mas, de quando em vez, lá acontece olhar para o ecrã de um dos canais generalistas nacionais.
Quando isso ocorre sei antecipadamente que de seguida terei de tomar um chá de cidreira ou uns sais de fruto, tal é a má disposição e o mal-estar que me provocam os conteúdos e as abordagens audiovisuais que nos vendem (à pagamos, pagamos) as televisões. Nos primeiros dias deste mês de Novembro de 2006, do século XXI da era cristã, num dos raros momentos em que cruzo acidentalmente o meu olhar com o “pequeno ecrã” a minha atenção fixou-se numa informação vinda de França e que o “pivot” do telejornal estava a introduzir. Tratava-se de um despedimento colectivo nos aeroportos franceses. Dirá o leitor que os despedimentos colectivos não são novidade e até já por cá se vão verificando e que são os sinais da “modernidade” de que o nosso primeiro-ministro tanto fala. É verdade mas, mesmo não sendo novidade e tendo-se tornado useiro e vezeiro nos tempos de voragem neoliberal que varrem o planeta, um despedimento colectivo é sempre um acontecimento sócio económico que deve merecer, julgo eu, atenção e preocupação. Mas o que fixou a meu reparo não foi tanto o facto em si.
 
O que verdadeiramente me levou a candidatar ao chá de cidreira foram os argumentos utilizados para o despedimento daqueles trabalhadores. - Práticas radicais. Segundo o ministro do interior, Nicolas Sarkozy, os trabalhadores despedidos eram suspeitos de práticas radicais e enquanto não provem o contrário mantém-se o despedimento. Com o desenrolar da notícia finalmente percebemos que os trabalhadores despedidos professam uma religião: o islamismo. Ou seja, o que está na origem do despedimento colectivo é a pratica de uma religião que, segundo Sarkozy, é radical. A fé, a oração, a esmola, o jejum e a peregrinação são, segundo o ministro do interior de França, as práticas radicais que justificam o afastamento, por despedimento, de mais de sete dezenas de trabalhadores dos aeroportos daquele país. A confissão de fé, a oração, a esmola, o jejum e a peregrinação a Meca são os cinco pilares que fazem de um cidadão um muçulmano.
 
Que, não são tão diferentes assim das práticas que fazem de um cidadão, cristão ou judeu, aliás outra coisa não seria de esperar sabendo-se que a origem das três religiões monoteístas remonta a Abraão. A primeira e mais extensa referência a Abraão aparece no Génesis, o livro das escrituras sagradas do judaísmo e do Antigo Testamento da Bíblia cristã, mas o patriarca é também referido noutros escritos judaicos e cristãos, incluindo o Talmude e o Novo Testamento, sendo frequentemente mencionado no Alcorão. Abraão é venerado por mais de metade da população mundial – 2.000 milhões de cristãos, 1.300 milhões de muçulmanos e cerca de 15 milhões de judeus – como patriarca e pai espiritual da sua fé. Práticas radicais só mesmo as que o ministro do interior francês protagoniza, ele sim, é detentor de uma prática e um discurso político radical. Prática e discurso condenáveis à luz da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do senso comum. Todos percebemos, cristãos, judeus, muçulmanos, hindus, budistas, animistas, laicos e ateus, que esta atitude de Sarkozy alimenta e promove o radicalismo e que tem associada uma estratégia de poder pessoal assente no populismo e no etnocentrismo. As continuadas práticas radicais de Nicolas Sarkozy essas sim constituem motivos, mais do que justificados, para o seu despedimento imediato e para a sua condenação pela opinião pública mundial.
 
Aníbal Pires, In A União, 14 de Novembro de 2006