Só por mero acaso...

mario_abrantesTenho a fugaz sensação de estar a viver num país orientado por comentadores que se apresentam como isentos e não-alinhados e são notícia em canais televisivos generalistas, igualmente não-alinhados, falando como se fora a voz do povo e orientando a política prosseguida pelos órgãos de poder, entremeados com telenovelas, entretenimento e publicidade. E quem são alguns destes nomes mais destacados, logo secundados por dezenas de economistas, constitucionalistas, especialistas (carreiristas?), que por sua vez lhes sedimentam as opiniões em 2ª venda do pescado? Marcelo Rebelo de Sousa, Marques Mendes, Morais Sarmento e José Sócrates...

Com exceção do último que, pode até dizer hoje algumas verdades, mas não se livra por isso do descrédito que o acompanha por ter aberto as portas aos que agora governam sob a batuta dum acordo de consentimento mútuo em que atolaram os portugueses, é tudo gente que só por mero acaso (?) pertence ao PSD e também é (ou foi) co-responsável pela política que está a ser seguida. Fingindo distanciar-se e mandar recados críticos ao Governo ou ao Presidente da República, aconselhando-os a fazer assim ou assado, com os recados que mandam (que na prática pouco têm em comum com a voz por quem insinuam fazer-se passar) acabam aliviando a responsabilidade negativa das medidas do governo ou das omissões e atos da presidência, antecipando-se até por vezes a elas e tornando-as falaciosamente óbvias e incontornáveis.

Exemplo fresco disso foram os conselhos consertados ao Presidente da República para que adiasse para a hipotética fiscalização sucessiva a verificação da constitucionalidade de algumas das normas do Orçamento Geral do Estado para 2014, e promulgasse desde já o documento...

Aqui está como os pseudo-representantes da opinião pública em canais generalistas, fingem fazer jus à sua isenção, mas transformam numa aparente inevitabilidade a promulgação imediata e acrítica de uma contestável peça de administração económico-política que encerra inúmeras inconstitucionalidades e acentua de forma absoluta as dificuldades da esmagadora maioria dos portugueses para 2014, facilitando assim a vida aos responsáveis que depois, já não como comentadores mas como governantes, irão decidir de facto.

E o certo é que, para muita gente, atrás das políticas que este OGE prossegue, ficam omissos os mais de 240 mil emigrantes dos últimos dois anos que ajudaram a diminuir o número oficial de desempregados; ficam perdoados os mais de 2.000 milhões perdidos em benefícios fiscais (concedidos a grandes grupos económicos) ou em dívidas fiscais prescritas; fica por se confirmar que o grosso dos ganhos do Estado em 2013 não resultou do corte nas gorduras (SWAPS, PPP, etc.) ou do corte nas despesas, mas sim do reforço da cobrança do IRS, isto é, da cobrança sobre os emagrecidos salários e pensões de quem trabalha ou já trabalhou; fica por constatar que, sendo menor o seu ritmo, a recessão não terminou; fica por aclarar que o aumento do consumo interno não se ficou a dever às políticas seguidas mas sim às impedidas pelo Tribunal Constitucional, enfim, ajuda-se a ofuscar perante as suas vítimas quem beneficia de uma certa política de austeridade, ajudando-se em simultâneo a desculpar quem decidiu optar por ela em lugar de qualquer outra.

Mas fica também a opinião (pouco independente) que, mesmo que os senhores comentadores generalistas assim não aconselhem, do bojo desta própria austeridade (que querem no fundo ver continuada) o novo ano de 2014 fará germinar os sinais de que existe outro caminho, e que ele é tão só necessário como também possível de percorrer...

Boas Festas e Feliz Ano Novo!

 

Artigo de opinião de Mário Abrantes, publicado em 26 de dezembro de 2013