Previsões e imprevistos

mario_abrantes"Um belo dia em 2014, quando os salários forem mais baratos até aos limites do terceiro-mundo, quando o trabalho for tão barato que deixe de ser o factor determinante do produto, quando tiverem ajoelhado todas as profissões, quando tiverem treinado a juventude na arte de trabalhar quase de graça, quando tiverem uma reserva de milhões de desempregados dispostos  a serem polivalentes, móveis e moldáveis, então a crise terá acabado.

Um belo dia em 2014, quando se tenha conseguido reduzir o sistema educativo em 30% de estudantes sem deixar traço visível da façanha, quando a saúde se compre e não seja oferecida, quando o nosso estado de saúde se pareça com a nossa conta bancária, quando nos cobrarem por cada serviço, por cada direito, por cada prestação, onde as pensões sejam tardias e baixas, quando estivermos convencidos de que precisamos de um seguro privado para garantir as nossas vidas, então anunciar-nos-ão que a crise terá terminado.

Nunca em tão pouco tempo se terá conseguido tanto. Por isso, não só me preocupa quando sairemos da crise, mas também como sairemos dela. O seu grande triunfo será não só, ficarmos mais pobres e desiguais, mas também mais cobardes e resignados, ingredientes sem os quais o terreno que tão facilmente ganharam estaria novamente em disputa."

Estratos daquelas que considero, a meu ver, constituírem interessantes previsões para o novo ano, de Concha Caballero (filóloga e professora de literatura numa escola pública de Córdoba em Espanha), relacionadas com o móbil, intentos e objectivos que se escondem por trás da crise, em parte artificialmente provocada, e que estão na cabeça tanto do alto comando político-económico europeu, a que provavelmente a autora se referia, mas seguramente também na cabeça do governo português.

Nenhum dos objectivos formais anunciados para 2013 por este último foi cumprido, como não foram nos anos anteriores. Nesse aspeto a falha é total, mas, pelos vistos, no essencial tanto o governo como a troika estrangeira pouco se têm preocupado com isso, pois, como já aconteceu em 2013, com mais uns sacrificiozinhos programados para 2014 tudo se resolverá, e assim se chegará ao que realmente almejam e que, mesmo escondendo-o expressamente, pouco terá de diferente das previsões da professora andaluza.

No ano em que se irão comemorar os 40 anos da Revolução de Abril, permito-me no entanto duvidar, no caso português, da possibilidade de todos esses objectivos que norteiam efetivamente a conduta do governo se virem a materializar em 2014, nomeadamente o "triunfo da resignação e da cobardia".

Certamente muitos se resignarão e se acobardarão por algum tempo, tal como durante os 48 anos da longa noite fascista. Mas nessa altura, com avanços e recuos, a resistência e a luta nunca pararam e foram decisivas para o enlace revolucionário que, de surpresa, destruindo os planos de continuidade marcelista do regime, simplesmente o derrubaram em Abril de 1974.

Também estes planos de recuo civilizacional de mais de 30 anos poderão cair, surpreendendo os seus fautores, porque a massa dos portugueses continua, como se verificou em 2013, levedada pelo fermento da resistência e da luta. E por muito que se tenha perdido, como de facto se perdeu, Abril não morreu, indicando-nos a possibilidade real de subverter (e mesmo inverter) a continuidade do empobrecimento e do aumento das desigualdades programada por aqueles que se apossaram do comando dos nossos destinos colectivos, tanto em Portugal como na Europa...

 

Artigo de opinião de Mário Abrantes, publicado em 8 de janeiro de 2014

PREVISÕES E IMPREVISTOS

Um belo dia em 2014, quando os salários forem mais baratos até aos limites do terceiro-mundo, quando o trabalho for tão barato que deixe de ser o factor determinante do produto, quando tiverem ajoelhado todas as profissões, quando tiverem treinado a juventude na arte de trabalhar quase de graça, quando tiverem uma reserva de milhões de desempregados dispostos  a serem polivalentes, móveis e moldáveis, então a crise terá acabado.

Um belo dia em 2014, quando se tenha conseguido reduzir o sistema educativo em 30% de estudantes sem deixar traço visível da façanha, quando a saúde se compre e não seja oferecida, quando o nosso estado de saúde se pareça com a nossa conta bancária, quando nos cobrarem por cada serviço, por cada direito, por cada prestação, onde as pensões sejam tardias e baixas, quando estivermos convencidos de que precisamos de um seguro privado para garantir as nossas vidas, então anunciar-nos-ão que a crise terá terminado.

Nunca em tão pouco tempo se terá conseguido tanto. Por isso, não só me preocupa quando sairemos da crise, mas também como sairemos dela. O seu grande triunfo será não só, ficarmos mais pobres e desiguais, mas também mais cobardes e resignados, ingredientes sem os quais o terreno que tão facilmente ganharam estaria novamente em disputa.”

Estratos daquelas que considero, a meu ver, constituírem interessantes previsões para o novo ano, de Concha Caballero (filóloga e professora de literatura numa escola pública de Córdoba em Espanha), relacionadas com o móbil, intentos e objectivos que se escondem por trás da crise, em parte artificialmente provocada, e que estão na cabeça tanto do alto comando político-económico europeu, a que provavelmente a autora se referia, mas seguramente também na cabeça do governo português.

Nenhum dos objectivos formais anunciados para 2013 por este último foi cumprido, como não foram nos anos anteriores. Nesse aspeto a falha é total, mas, pelos vistos, no essencial tanto o governo como a troika estrangeira pouco se têm preocupado com isso, pois, como já aconteceu em 2013, com mais uns sacrificiozinhos programados para 2014 tudo se resolverá, e assim se chegará ao que realmente almejam e que, mesmo escondendo-o expressamente, pouco terá de diferente das previsões da professora andaluza.

No ano em que se irão comemorar os 40 anos da Revolução de Abril, permito-me no entanto duvidar, no caso português, da possibilidade de todos esses objectivos que norteiam efetivamente a conduta do governo se virem a materializar em 2014, nomeadamente o “triunfo da resignação e da cobardia”.

Certamente muitos se resignarão e se acobardarão por algum tempo, tal como durante os 48 anos da longa noite fascista. Mas nessa altura, com avanços e recuos, a resistência e a luta nunca pararam e foram decisivas para o enlace revolucionário que, de surpresa, destruindo os planos de continuidade marcelista do regime, simplesmente o derrubaram em Abril de 1974.

Também estes planos de recuo civilizacional de mais de 30 anos poderão cair, surpreendendo os seus fautores, porque a massa dos portugueses continua, como se verificou em 2013, levedada pelo fermento da resistência e da luta. E por muito que se tenha perdido, como de facto se perdeu, Abril não morreu, indicando-nos a possibilidade real de subverter (e mesmo inverter) a continuidade do empobrecimento e do aumento das desigualdades programada por aqueles que se apossaram do comando dos nossos destinos colectivos, tanto em Portugal como na Europa…