Como o mundo pula e avança

mario_abrantesA Lei n.º 64/2013, de 27 de agosto, da Assembleia da República regula a obrigatoriedade de publicitação dos benefícios concedidos pela Administração Pública a particulares. Estando no essencial correta ao excluir da publicitação as prestações sociais da segurança social, as bolsas de estudo, as isenções de taxas moderadoras ou de propinas, esta lei não deveria dispensar do escrutínio público as pensões e subvenções atribuídas a ex-Presidentes da República, ex-ministros e ex-primeiros-ministros, ex-governadores de Macau, ex-ministros da República das Regiões Autónomas, ex-deputados ou ex-membros do Conselho de Estado. Seria sem dúvida útil conhecer os montantes, a sua justificação e respetivos beneficiários num país onde os ricos estão cada vez mais ricos e onde se registam cortes sucessivos e cruéis nos rendimentos do trabalho e nas pensões e reformas. Quem votou esta lei tal como está? O PSD, o CDS e o PS...

Entretanto já este ano foram apresentadas na Assembleia da República propostas que visavam acabar com a promiscuidade entre interesses públicos e privados alterando o estatuto dos deputados e impondo, ora um regime de exclusividade aos parlamentares, ora um regime de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos. Mas estas duas iniciativas políticas, com origem no BE e no PCP, foram chumbadas pelos mesmos que votaram a anterior lei: o PSD, o CDS e o PS.

Estamos portanto perante dois exemplos de intervenção que demarcam uns políticos de outros, que demarcam uns partidos de outros, revelando modos diferentes de encarar a política e de ser político, e tornando absurda, demagógica e pouco séria a dissseminação da ideia de que os partidos são todos iguais e de que todo o político o que procura é o seu tacho. Esta ideia afasta os cidadãos, sobretudo os mais sérios e preocupados, da atividade política e das suas instituições. Adultera a dignidade intrínseca da coisa pública, e torna até legítimo deduzir que quem a divulga ou é inconsciente ou pretende desculpabilizar e até institucionalizar o aproveitamento que alguns fazem dos cargos políticos e públicos para benefício particular.

Vem esta reflexão a propósito do zelo com que a "Entidade das Contas e Financiamentos Políticos", contando com a colaboração de outras entidades oficiais ligadas ao Governo PSD/CDS (conforme divulgado pelo Jornal "Público"), andou a investigar a origem e a legalidade das entradas de fundos para a Festa do "Avante" (que decorreu no passado fim de semana).

Tudo bem. Mas, depois de um ano distraídos perante um buraco de milhares de milhões de euros que tem estado a ser cavado no BES e no GES, ocorre-nos a pergunta: É com uma festa que além de ser popular, cultural, desportiva, de lazer, que dignifica a política com o propósito de aproximar dela os cidadãos e que proporciona fundos à atividade de um partido (desta forma conscientemente financiada pelo povo) que esta gente está preocupada?

Nada mais óbvio. Um governo cada vez mais ilegítimo e afastado dos cidadãos, dependente do suporte corruptor de grandes grupos económicos, e cuja queda só não aconteceu ainda porque o seguram a mão do Presidente da República e as derivações eleiçoeiras do maior partido da oposição, mostra-se naturalmente incomodado com a presença e influência na cena política de uma força que previligia como fonte de recursos o subsídio popular voluntário.

Dizem que não há diferenças, mas que elas existem, existem, e tem sido, é, e continuará a ser através delas e do seu reconhecimento que, como dizia o poeta, o mundo pula e avança...

 

Artigo de opinião de Mário Abrantes, publicado em 10 de setembro de 2014