Mesmo parcialmente ofuscados...

mario_abrantesEstamos a viver entalados entre a propagação massiva e alarmante não do Ébola mas das notícias sobre ele, e os silêncios paralelos que escondem o agravamento descontrolado da fome e da sede africanas. Entre a publicidade às eleições no Brasil, onde parecem todos jogar na derrota de Dilma, e os silêncios que se abateram sobre a vitória (a terceira) de domingo passado do índio Evo Morales com 61% dos votos, na Bolívia, ou sobre a situação na Venezuela. Entre as decapitações do Estado Islâmico e as omissões que encobriram o apoio dos EUA a estes terroristas no combate contra o governo de Damasco. Entre os bons exemplos de Portugal e a sua fidelidade à linha Merkel nas chamadas políticas de consolidação orçamental, e os maus exemplos da Inglaterra que está fora do Euro e tenciona pronunciar-se sobre a continuidade da sua permanência na UE, ou da França que começa a rejeitar as políticas de austeridade contra a vontade da Comissão Europeia. Entre a difusão da ideia de que o buraco do BES não afetará as contas do défice para 2014 nem as nossas algibeiras, e a certeza antes escondida (e agora posta a nu por um relatório de Bruxelas) de que, com este o buraco, a dívida pública irá disparar para um dos níveis mais altos da Europa e passar-nos-á a custar, só de juros, 13.000 milhões de euros por ano. Entre a candura de um Presidente que nos vem dizer que infelizmente o governo, embora gostasse de o fazer, "não pode baixar os impostos" e a realidade omitida nas suas cândidas declarações de que afinal o IRC vai baixar 2% em 2015...
Definitivamente os ventos que empurram a informação que nos chega não estão favoráveis à sua isenção, objectividade e independência. Decididamente o nosso sentido crítico e a nossa capacidade de ajuizar de forma livre sobre a situação que nos circunscreve estão a ser alvo de uma consistente e persistente tentativa de manipulação. E, tal como acontecia na ditadura fascista, o mesmo se passa agora, quando os poderes públicos e o Estado são capturados e colocados, de forma predominante, ao serviço prioritário dos interesses da minoria detentora do poder económico e financeiro.
E assim se tentou transformar a hipotética e ridícula baixa de pouco mais de 1% da sobretaxa de IRS numa questão política aparentemente decisiva para Portugal e os portugueses, sobre a qual os seus esforçados ministros se debruçaram horas a fio até de madrugada no passado fim de semana. E pior. Ocultando o que garantiram antes, isto é, que a sobretaxa de 3% do IRS era para vigorar exclusivamente no período de intervenção da troika, concluíram agora que tal redução apenas seria executada por um outro governo em 2016, além de que ficaria condicionada à recolha de excedentes no combate à fraude e à evasão fiscais, como se fossem os trabalhadores e os pensionistas (impossibilitados de escapar aos "descontos") os responsáveis por elas. Chama-se a isto menorizar com despudor a inteligência de todo um povo e ao mesmo tempo tentar desviar-lhe a atenção sobre as causas efetivas que estão na origem da continuidade das políticas de austeridade e de empobrecimento para além da troika.
Mesmo parcialmente ofuscados por esta farsa levada aos limites do absurdo para esconder, por trás da invocação dos "inevitáveis compromissos associados à moeda única", que o capital não castiga o capital mas sim quem vive ou já viveu do seu trabalho, não nos resta outra alternativa senão transformar as forças e a lucidez de que ainda dispomos num contributo ativo para romper o rumo político que está a ser imposto ao país e o conduz, desastre após desastre, mesclados de incompetência, à sua criminosa descaracterização enquanto democracia e nação progressiva. Para que não regrida de novo à condição de privilégio de meia dúzia o direito universal à vida com dignidade, paz, justiça e bem-estar, adquirido com a luta e o sacrifício de várias gerações desde a segunda metade do século passado...

 

Artigo de opinião de Mário Abrantes, publicado em 26 de outubro de 2014