Artigo de opinião de Mário Abrantes
Sob a responsabilidade da FLAD (Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento), o IV Fórum Açoriano Franklin Roosevelt realizado na semana passada nas Lages do Pico trouxe a público formalmente pela primeira vez a nível regional uma coisa que anda em negociação secreta desde Junho de 2013 chamada TTIP – Acordo Transatlântico de Comércio e Investimento, ou simplesmente Tratado Transatlântico.
Deste acordo bilateral entre a C. Europeia e a Administração Norte-americana, enquanto o País se distrai com as presidenciais e esquece as legislativas, têm vindo a conta-gotas e de forma sectorial a chegar ao conhecimento público algumas das questões que envolve e que desde logo merecem ser classificadas no mínimo como gravíssimas ameaças ao ordenamento jurídico/comercial e às mais elementares normas do direito internacional pelos quais se regem as relações entre estados soberanos.
No quadro da liberalização das relações comerciais (e outras) entre os EUA e a UE, em áreas estratégicas para os Açores como a agricultura, o turismo, o mar e os recursos marinhos, desde logo se adivinha como provável no âmbito deste Acordo o menosprezo pelas especificidades da Região e da vida de quem nela reside, ou ainda a potencial depredação da soberania relativa à ZEE atualmente sob jurisdição portuguesa, e que legitimamente deveria, pelo contrário, ser estendida das 100 para as 200 milhas.
Mas, pelo que se vai sabendo e que tem estado escondido dos parlamentos nacionais, o impacto do TTIP poderá ir mais longe ainda se não forem travadas as negociações em curso. A entrada liberalizada em toda a UE de produtos dos EUA, multiplicaria por muitos em Portugal os efeitos similares ao do fim das quotas leiteiras, originando, além de falências e desemprego em escala superior, a quebra das barreiras, por exemplo, à penetração de produtos transgénicos ou de outros atualmente submetidos a critérios de qualidade para consumo público muito mais exigentes nos países da UE do que nos EUA. A agricultura super-subsidiada nos EUA passaria a concorrer livremente com os produtos agrícolas portugueses, na maior parte dos casos carentes de apoios suficientes para garantir preços justos à produção.
Há mais ainda caro Leitor, já imaginou o que seria por exemplo se a Nestlé pudesse processar o Estado Português por se recusar a privatizar a água em Portugal, e o país fosse condenado e obrigado a entregar à iniciativa privada os seus recursos hídricos? Ou se uma dada multinacional se pudesse opor juridicamente à publicação de um decreto sobre a subida do salário mínimo em Portugal, alegando quebra nos seus lucros? Pois é qualquer coisa do género que está também a ser negociada, com o aval do governo português, no âmbito do TTIP, quando se prevê a criação de tribunais arbitrais para regularem as relações entre os Estados e as empresas multinacionais.
O Tratado Transatlântico não passa de uma das formas com que os EUA e a UE tentam contornar o impasse atual das negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC), procurando ao nível bilateral que a penetração das multinacionais seja aberta a tudo o que é público e controlado pelos Estados (saúde, educação, segurança social, tribunais e recursos naturais) sem que estes se possam opor, e sem que aquelas se tenham de submeter às leis principais, incluindo constitucionais, de cada Estado...
Tem legitimidade para permanecer no poder por mais um dia que seja qualquer governo que esteja a negociar secretamente em nome de Portugal compromissos de consequências tão gravosas para o país, as regiões e o povo que diz representar, como aqueles que aqui foram referidos?