Artigo de opinião de Mário Abrantes:
Ponta Delgada é hoje uma cidade virada para o mar. Esta sua moderna faceta começou a desenhar-se no final da década de 80 com o prolongamento da avenida marginal para nascente (que, goste-se ou não, fez desaparecer a velha e bonita Calheta de Pero de Teive e colocar no seu lugar a marina, o edifício do Clube Naval e as novas piscinas), e foi definitivamente adquirida em 2008 (goste-se ou não também) com a inauguração da obra do complexo das Portas do Mar e da gare marítima de cruzeiros. Pelo meio outras obras de requalificação da orla costeira foram compondo e estendendo a viragem da cidade para o mar, como as marginais de S. Roque e da Relva ou o reordenamento da doca e do seu porto.
Todavia, após estes volumosos investimentos ao longo dos últimos 25 anos, um significativo troço da costa de Ponta Delgada foi ficando para trás e permanecido intocável, de forma nenhuma porque a sua beleza e qualidade urbanística merecessem ser conservadas, mas antes porque nele se encontrava instalado um complexo estratégico de abastecimento, trasfega e depósito de combustíveis. Estamos a falar, está bem de ver, das instalações da Bencom SA e da orla marítima que vai desde a Pedreira do Meio no Estradinho até à Nordela em Santa Clara.
Com quase tantos anos como o aterro da Calheta de Pero de Teive efetuado na zona nascente da cidade, esteve, no seu lado poente, a movimentação dos moradores desta zona pela desativação das instalações da Bencom, perigosamente localizadas junto às suas habitações e fonte de permanente e agressiva poluição.
Agora que por fim estes depósitos foram retirados, ficou inteiramente patente a necessidade de recuperar e requalificar o troço em falta da orla marítima, em Santa Clara, para que Ponta Delgada se possa assumir de corpo inteiro na sua adquirida condição de cidade virada para o mar.
Projetos interessantes já existem e têm sido divulgados, alguns até bem ajustados a estes tempos de contenção e nem por isso de qualidade desprezível tanto sob o ponto de vista urbanístico, como da sua utilidade social e da defesa da qualidade de vida dos habitantes e visitantes desta zona da cidade. Constituiria portanto um ato de reprovável laxismo político, naquilo que são as competências tanto do Governo Regional como da Câmara Municipal nesta matéria, deixar por preencher este vazio na requalificação da orla costeira da maior cidade dos Açores.
E tanto mais urgente se revela a definição e concretização dessa requalificação, quanto mais se insinua em hipotética alternativa uma insólita, desadequada e oportunista intenção da Câmara de Comércio de Ponta Delgada, potencialmente aviltante para os interesses e preocupações daqueles que ao longo de décadas pugnaram para aliviar esta zona da cidade do seu emplastro poluente e perigoso, de ver construído no lado poente da doca de Ponta Delgada, e portanto na zona agora libertada pela saída dos depósitos, um porto de raíz, que servisse de terminal de descarga de granéis (cereais), klinkers (pó para fabrico de cimento) e gás.
Para além de tais valências serem de momento perfeitamente comportáveis pelo Porto de Ponta Delgada, não justificando o oneroso investimento na construção de um molhe portuário próprio, seria como substituir a peste pela cólera na vida de quem vive e trabalha na zona, e significaria comprometer de forma irrevogável uma finalização ajustada e equilibrada na viragem de Ponta Delgada para o mar.