O documento produzido e apresentado pela UNICEF retrata a situação dramática de centenas de milhões de crianças privadas de direitos elementares e vítimas da mais perversa das crueldades – a pobreza. A crueza da realidade vivida por centenas de milhões de crianças um pouco por todo o Mundo foi o pretexto de, pela terceira vez este ano, abordar nesta coluna um tema que deveria constar, permanentemente, da agenda política local, regional, nacional e mundial. A divulgação do relatório dá início oficial à celebração do 60º aniversário da UNICEF e, coincidência ou não, a data não poderia ser melhor escolhida – a proximidade do Natal. A quadra que se avizinha é a época do ano em que a sociedade do “bem-estar e da abundância” lembra, ainda que de uma forma efémera, alguns valores que caracterizam a nossa espécie e em que o chamado “espírito de Natal”, seja lá o que isso for, aconselha a partilhar. Ficamos de consciência tranquila quando adquirimos um postal da UNICEF, contribuímos para o “cabaz de NATAL” das crianças pobres ou para o banco alimentar. É um gesto nobre e digno que devemos repetir ao longo de todo o ano. Sendo importante, este gesto é, no entanto, insuficiente, tal é a dimensão dos problemas que afectam as crianças de todo o Mundo – as nossas crianças.
A pobreza infantil e a vulnerabilidade que lhe está associada afecta um cada vez maior número de crianças dos países desenvolvidos - 50 milhões nos países da OCDE, segundo a UNICEF. A pobreza infantil não é, pois, uma questão longínqua que afecte apenas o esquecido continente africano, os povos sul-americanos ou do sudoeste asiático. A pobreza infantil é uma realidade globalizada. Realidade bárbara que urge por medidas políticas e económicas que ponham fim às acentuadas assimetrias de desenvolvimento e de rendimento que estão na origem de grande parte das atrocidades cometidas, um pouco por todo o lado, sobre as crianças. Realidade desumana que urge por uma atitude individual diferente e que não se limite a um gesto, anual, de solidariedade. Crianças sem identidade oficial, crianças privadas de cuidados parentais, crianças exploradas e escravizadas, crianças que assumem o papel de adultos, crianças discriminadas pelo género, pela origem, pela deficiência, crianças que nunca terão infância. Crianças que nunca serão… A cada 3 segundos morre uma criança, mais de metade das crianças que nascem nos países desenvolvidos (excluindo a China) não são registadas, ou seja, não existem como cidadãos, 143 milhões de crianças são órfãs, 171 milhões é a estimativa para o número de crianças que manuseiam produtos e equipamentos perigosos em fábricas, minas e na agricultura, um número indeterminado, mas elevado (milhões), de crianças são vendidas anualmente em circuitos de tráfico de seres humanos e forçadas a entregar-se a actividades degradantes, entre as quais a prostituição.
A comunidade internacional comprometeu-se, no limiar do século XXI, com os Objectivos do Milénio (ODM), que têm como horizonte temporal o ano de 2015, a reduzir drasticamente a mortalidade infantil, a garantir a escolarização primária universal, a promover o acesso generalizado das populações a água potável, a promover a saúde materno infantil, etc. O compromisso não está, no entanto, a ser cumprido, e alguns dos ODM, a verificarem-se as actuais tendências, não se cumprirão antes de 2040, como por exemplo a universalidade da escolaridade primária. O relatório a que me tenho vindo a referir, e que dá título à coluna desta semana, encontra-se no sítio www.unicef.pt. (versão em português). Caro leitor julgue por si e, sobretudo, mude de atitude e actue, pois a dramática situação da infância no mundo não é uma inevitabilidade.
Aníbal C. Pires em “Olhares” no Açoriano Oriental em 16de Dezembro de 2005