A morte de Dias de Melo, embora não tivesse sido um acontecimento de
todo inesperado para quem acompanhou a evolução do seu estado de saúde
nos últimos tempos, criou um vazio muito grande na vida intelectual dos
Açores. De facto Dias de Melo, não só era um escritor consagrado, com
vasta obra publicada, como era, fundamentalmente, o nosso escritor.
Quando me refiro assim a Dias de Melo não pretendo minorar nenhum dos muitos bons escritores que existem nesta Região, mas pretendo, sem subterfúgios, singularizar a personalidade e a obra de Dias de Melo, porque elas são, de facto, singulares.
Nos anos 50 e 60 a “lei da rolha” era uma das determinantes da nossa vida colectiva. Mas esse silêncio imposto existia porque o sistema ditatorial de Salazar não tolerava qualquer forma de contestação e combatia todos os movimentos de transformação que se esboçavam. A pobreza era generalizada e a exploração do trabalho era inaudita. O isolamento cultural e a escassez do ensino eram impostos. As populações estavam condenadas a viver muito abaixo de um nível digno e a saída, para os que conseguiam, era a emigração. O trabalho quase não tinha valor e um homem com família tinha que deitar a mão a tudo, desde o trabalho agrícola para a subsistência, até à dura faina da caça à baleia. Aqui nas ilhas o isolamento era enorme, vivíamos o “regime” dos dois navios por mês de e para Lisboa e as ligações entre as ilhas eram asseguradas, primeiro pelos “iates do Pico” e depois pelo Cedros, Arnel e Ponta Delgada. A caça à baleia tinha, nos anos 50, grande importância económica no Pico e Faial, mas a exploração exercida sobre os baleeiros ultrapassava todos os níveis de vergonha que se possam imaginar.
Nesses mesmos anos 50 e 60 as tertúlias literárias e políticas, que alguns decénios atrás tinham tido grande significado nas cidades açorianas, estavam estranguladas pela repressão. Os movimentos políticos actuantes de oposição, na prática, não existiam e as acções culturais eram escassas e muito marcadas pelo medo que as figuras do regime, a policia politica e os fanáticos fascistas geravam na sociedade.
Foi exactamente com esse quadro político e social e com essa triste realidade de isolamento cultural e domínio político que o professor primário José Dias de Melo se fez escritor. Pegou no que conhecia bem, trabalhou com tudo o que sentia no fundo de si próprio, nunca se esqueceu das verdades que conhecia, arrumou o medo no fundo da arca e começou por produzir aquela bela colecção de retratos escritos de homens do mar e da terra que é o “Mar Rubro”.
Homenagem sentida aos baleeiros da sua Calheta, “Mar Rubro” já nos mostra que aqueles homens que vivem da coragem que precisam ter, são homens vilmente explorados na sua terra. Veio a seguir essa obra maior e brilhante que é o “Pedras Negras”, que sendo uma narrativa de ficção é uma profundíssima denuncia da situação que se vivia e é um grito de revolta que poucos foram capazes de dar naquele tempo e naquele espaço. Essa obra marcou-me profundamente e teve mesmo, estou convicto disso, responsabilidade na definição de caminhos de vida e de luta que escolhi para mim. Com “Pedras Negras”, que li muito novo, ganhei plena consciência da exploração, de que eu não era vítima, mas que vitimava o grosso da sociedade que era a minha.
Tive plena consciência que a vida má que os meus amigos baleeiros, com quem convivia no Varadouro, tinham, era o resultado da deliberada atitude daqueles que impunham o atraso das nossas ilhas e do nosso Pais. Com “Pedras Negras” começou a despertar em mim um sentido de justiça social ligado à vontade de transformar que antes não existia.
Depois de “Pedras Negras” vieram muitas outras obras. Algumas delas que consagram Dias de Melo como um escritor marítimo de primeira água. Outras que o definem como um humanista completo e verdadeiro. Outras ainda que nos mostram que esse homem, que também sofreu ao longo da sua vida, nunca foi capaz de olhar para outra coisa que não fosse este Povo de que ele era parte.
Só conheci pessoalmente Dias de Melo em 1979, em casa do muito saudoso António Duarte, cerca de 14 anos depois de ter lido pela primeira vez “Pedras Negras” e cerca de 6 anos depois de me ter espantado e deliciado com “Cidade Cinzenta”. Nesse tempo quase sabia de cor essas duas obras, bem como o “Mar Rubro”, o “Mar pela Proa” e alguns dos poemas das “Toadas do Mar e da Terra”.
Lembro-me muito bem desse primeiro encontro, pois vi diante de mim o homem que era o escritor que eu muito admirava, e esse homem que eu não conhecia correspondia totalmente, ao escritor que eu tão bem conhecia. Lembro-me do impacto que teve em mim aquela figura, na altura ainda massiva, pendurada no cachimbo e a falar, com aquela pronúncia dos “calhetas” e senti desde logo as afinidades profundas que me ligavam a ele. Nos 29 anos seguintes convivi intensamente com Dias de Melo; militei com ele no mesmo Partido; recebi dele muitas opiniões, conselhos e ensinamentos que muito me ajudaram no exercício das funções institucionais e partidárias que desempenhei; observei a imensa capacidade de trabalho que ele tinha e que manteve quase até morrer. Por tudo isto a morte de Dias de Melo foi, para mim, uma perda pessoal profunda.
Curiosamente, uma grande parte da Comunicação Social omitiu nas notícias sobre o seu falecimento, a qualidade de militante do PCP da qual Dias de Melo muito se orgulhava. Essa omissão é sinal do tempo mais “opaco e cinzento” que estamos a viver sob a batuta de quem devia repudiar esse estilo.
Mas a verdade toda é a de que este nosso grande escritor nunca abdicou das convicções que lhe deram a força para ser o escritor deste Povo.
A memória de Dias de Melo fica com todos nós, porque foi por todos nós que ele fez o que fez.
Nos anos 50 e 60 a “lei da rolha” era uma das determinantes da nossa vida colectiva. Mas esse silêncio imposto existia porque o sistema ditatorial de Salazar não tolerava qualquer forma de contestação e combatia todos os movimentos de transformação que se esboçavam. A pobreza era generalizada e a exploração do trabalho era inaudita. O isolamento cultural e a escassez do ensino eram impostos. As populações estavam condenadas a viver muito abaixo de um nível digno e a saída, para os que conseguiam, era a emigração. O trabalho quase não tinha valor e um homem com família tinha que deitar a mão a tudo, desde o trabalho agrícola para a subsistência, até à dura faina da caça à baleia. Aqui nas ilhas o isolamento era enorme, vivíamos o “regime” dos dois navios por mês de e para Lisboa e as ligações entre as ilhas eram asseguradas, primeiro pelos “iates do Pico” e depois pelo Cedros, Arnel e Ponta Delgada. A caça à baleia tinha, nos anos 50, grande importância económica no Pico e Faial, mas a exploração exercida sobre os baleeiros ultrapassava todos os níveis de vergonha que se possam imaginar.
Nesses mesmos anos 50 e 60 as tertúlias literárias e políticas, que alguns decénios atrás tinham tido grande significado nas cidades açorianas, estavam estranguladas pela repressão. Os movimentos políticos actuantes de oposição, na prática, não existiam e as acções culturais eram escassas e muito marcadas pelo medo que as figuras do regime, a policia politica e os fanáticos fascistas geravam na sociedade.
Foi exactamente com esse quadro político e social e com essa triste realidade de isolamento cultural e domínio político que o professor primário José Dias de Melo se fez escritor. Pegou no que conhecia bem, trabalhou com tudo o que sentia no fundo de si próprio, nunca se esqueceu das verdades que conhecia, arrumou o medo no fundo da arca e começou por produzir aquela bela colecção de retratos escritos de homens do mar e da terra que é o “Mar Rubro”.
Homenagem sentida aos baleeiros da sua Calheta, “Mar Rubro” já nos mostra que aqueles homens que vivem da coragem que precisam ter, são homens vilmente explorados na sua terra. Veio a seguir essa obra maior e brilhante que é o “Pedras Negras”, que sendo uma narrativa de ficção é uma profundíssima denuncia da situação que se vivia e é um grito de revolta que poucos foram capazes de dar naquele tempo e naquele espaço. Essa obra marcou-me profundamente e teve mesmo, estou convicto disso, responsabilidade na definição de caminhos de vida e de luta que escolhi para mim. Com “Pedras Negras”, que li muito novo, ganhei plena consciência da exploração, de que eu não era vítima, mas que vitimava o grosso da sociedade que era a minha.
Tive plena consciência que a vida má que os meus amigos baleeiros, com quem convivia no Varadouro, tinham, era o resultado da deliberada atitude daqueles que impunham o atraso das nossas ilhas e do nosso Pais. Com “Pedras Negras” começou a despertar em mim um sentido de justiça social ligado à vontade de transformar que antes não existia.
Depois de “Pedras Negras” vieram muitas outras obras. Algumas delas que consagram Dias de Melo como um escritor marítimo de primeira água. Outras que o definem como um humanista completo e verdadeiro. Outras ainda que nos mostram que esse homem, que também sofreu ao longo da sua vida, nunca foi capaz de olhar para outra coisa que não fosse este Povo de que ele era parte.
Só conheci pessoalmente Dias de Melo em 1979, em casa do muito saudoso António Duarte, cerca de 14 anos depois de ter lido pela primeira vez “Pedras Negras” e cerca de 6 anos depois de me ter espantado e deliciado com “Cidade Cinzenta”. Nesse tempo quase sabia de cor essas duas obras, bem como o “Mar Rubro”, o “Mar pela Proa” e alguns dos poemas das “Toadas do Mar e da Terra”.
Lembro-me muito bem desse primeiro encontro, pois vi diante de mim o homem que era o escritor que eu muito admirava, e esse homem que eu não conhecia correspondia totalmente, ao escritor que eu tão bem conhecia. Lembro-me do impacto que teve em mim aquela figura, na altura ainda massiva, pendurada no cachimbo e a falar, com aquela pronúncia dos “calhetas” e senti desde logo as afinidades profundas que me ligavam a ele. Nos 29 anos seguintes convivi intensamente com Dias de Melo; militei com ele no mesmo Partido; recebi dele muitas opiniões, conselhos e ensinamentos que muito me ajudaram no exercício das funções institucionais e partidárias que desempenhei; observei a imensa capacidade de trabalho que ele tinha e que manteve quase até morrer. Por tudo isto a morte de Dias de Melo foi, para mim, uma perda pessoal profunda.
Curiosamente, uma grande parte da Comunicação Social omitiu nas notícias sobre o seu falecimento, a qualidade de militante do PCP da qual Dias de Melo muito se orgulhava. Essa omissão é sinal do tempo mais “opaco e cinzento” que estamos a viver sob a batuta de quem devia repudiar esse estilo.
Mas a verdade toda é a de que este nosso grande escritor nunca abdicou das convicções que lhe deram a força para ser o escritor deste Povo.
A memória de Dias de Melo fica com todos nós, porque foi por todos nós que ele fez o que fez.
José Decq Mota em 30 de Setembro de 2008