Os caricaturistas de extrema-direita na Dinamarca colocam uma bomba na cabeça de Maomé, imprimindo expressão religiosa às novas cruzadas pela conquista do petróleo e pelo domínio militar mundial. Os maus reagem, colocando bombas à cintura e aumentando a escalada da violência. Duas das civilizações (religiões também) mais importantes do Mundo parecem ter sido condenadas ao confronto belicista: de um lado os pacificadores aguerridos, ameaçando com um arsenal militarmente invencível, do outro os promotores da guerra que respondem com raptos e bombas aos invasores. Alguma coisa soa mal nisto tudo, e nem serão as caricaturas ou a reacção violenta dos fundamentalistas islâmicos o cerne do problema. Serão antes, e apenas, uma expressão de que o problema existe. O cerne do problema, embora com novas formas, é a repetição histórica do que levou à deflagração das duas guerras mundiais do século XX.
A disputa político-militar do domínio dos mercados e das fontes de riqueza do Mundo. A construção da “Casa Comum”, conceito que privilegiava o diálogo entre civilizações e o consenso entre nações, e que se chegou a delinear como objectivo nos finais do século passado perante as ameaças ambientais e globais à habitabilidade do nosso planeta, degenerou perigosamente. Das cedências mútuas e construtivas regressou-se ao militarismo e ao fundamentalismo. O capitalismo, após a derrota do campo socialista, livrou-se das amarras da guerra-fria e reentrou em desenvolvimento selvagem e globalizado. Não conseguiu manter durante muito tempo a face humana, em nome da qual combatia o outro campo; ignorou mais uma vez a acumulação da pobreza, da miséria, da doença, e do desemprego à escala planetária e virou neo-liberalismo estendendo os braços até onde antes não chegava. Tornou-se insaciável e por isso cego e surdo para compreender as reacções de quem vitimiza, e por isso cegas e surdas, também, muitas dessas reacções (sejam as terroristas nos países árabes ou os carros incendiados pelos excluídos em França).
Dessa ofensiva, num elo de ligação menos visível mas muito mais profundo, também fazem parte, no plano económico e social, as políticas de liberalização, desregulação laboral, privatizações e desmantelamento das funções sociais do Estado (a directiva “Bolkenstein” sobre a liberalização dos serviços públicos constitui a última revelação europeia do avanço desta ofensiva); as chantagens sobre os Estados para o controlo dos défices a qualquer preço (como acontece com Portugal); o crescimento dos sentimentos xenófobos e racistas e a ascensão (também eleitoral) de forças e organizações de extrema-direita nos países mais desenvolvidos. Os EUA acabam de anunciar um orçamento militar record e a sua intenção de prosseguir e intensificar as guerras e, sob qualquer pretexto conveniente, a ocupação de países que se não verguem aos seus ditames (não só a Leste ou no Mundo Árabe, mas também no seu próprio continente). A NATO projecta uma intervenção militar no Sudão, prepara grandes manobras militares em África e a criação de uma aliança militar estratégica no Atlântico Sul. E nós por cá…todos bem…
Mário Abrantes, In Jornal dos Açores, Ponta Delgada, 23 de Fevereiro de 2006