E, contudo, ela mexe-se!

mario_abrantes.jpg“Corre-me leite pela ribeira! Como é possível?”. Assim pasmado me abordou o dono daquelas terras, chegado do Canadá em visita. E eu, perante o seu olhar incrédulo, tentei explicar-lhe:
“É que os lavradores, mesmo com a indústria a baixar-lhes o preço, têm vindo a melhorar sucessivamente a sua produtividade e a qualidade do leite, mas os regulamentos comunitários acordados com a República e a Região impedem-nos de produzir mais…”. “O quê?...”, volveu-me o meu interlocutor, “…Mas não há quem compre ou quem queira esse leite?”. Mais uma vez, perante a sua estupefacção, lhe tentei explicar: “Há mercado, e fome em África também não falta, mas a União Europeia, por razões de preço e de escoamento que interessam aos países maiores, impõe uma restrição geral à produção. Mais lhes importa cortar na insignificante gota europeia que representa a produção dos Açores do que na fome do Mundo ou na economia insular…”. E assim é. Para a injusta perda de rendimento dos produtores; para o sufoco, por via administrativa, desta base económica regional; para a imoralidade intrínseca ao desperdício de um alimento base da humanidade, o poder político verga-se de forma vergonhosa e indigna perante as leis do mercado, perfeitamente desajustadas a uma economia insular e ultra-periférica como a nossa. No entanto, e apesar de tudo, a economia mexe-se nos Açores. Os últimos indicadores referentes ao défice comercial da Região permitem concluir do aumento das vendas para o exterior (e consequentes receitas para o “interior”) resultantes em particular dos produtos derivados do leite e também das pescas. Ou seja, os sectores objecto do mais irracional estrangulamento ao longo dos últimos anos são, ainda assim, aqueles que mais contribuem para a diminuição do défice comercial da Região! Mete-se pelos olhos adentro que a vitalidade produtiva que resta à economia regional se mantém, sem alternativa credível, ligada àquilo que sempre soubemos e continuamos a saber fazer bem. E, se a insistência absurda no sufoco destes sectores produtivos se mantiver com o grau de intensidade da década mais recente, o absurdo triunfará sem dúvida porque se trocou o pouco que dá para viver a muitos pelo nada de que poucos se aproveitam (muito…). Dirão então que a Região foi vítima da globalização e tratá-la-ão como, na União Europeia, pretendem tratar agora os trabalhadores que ficaram sem trabalho por causa da deslocalização das suas empresas (multinacionais) para países de mão-de-obra barata: Mais uns subsídios para minimizar as perdas e (pasme-se) para apoiar a deslocalização simultânea da mão-de-obra, certamente atrás das empresas que se foram…para, mesmo em caso de sucesso, ganhar menos, está claro! Só que, por enquanto, ainda não foi encontrada a forma de “deslocalizar” estes nove pedaços de terra espalhados no meio do Atlântico…Aguarda-se que o choque tecnológico, de entre outros nobres objectivos e com a ajuda providencial do Bill Gates, consiga alcançar também esse desiderato.
 
Mário Abrantes, In Jornal dos Açores, Ponta Delgada, 02 De Março de 2006